Yori: conectada pela música, dupla queer vence reality e brilha em festival

“Hoje, fiquei pensando: o menino que apanhou de sunguinha vermelha por andar igual ‘viado’ vai fazer um desfile no Carnauol. Parecia impossível”, reflete Nego Lias, 28, cantor, compositor e musicista da dupla Yori, do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo.

Ele se apresentou no festival musical ao lado do parceiro Fah Lyma, 34, cantor e compositor e cria do Capão Redondo, na zona sul. A dupla apresentou sete canções, sendo cinco delas autorais, no festival que teve entre outras atrações cantores famosos como Belo, Claudia Leitte, Ana Castela, Sean Paul e Christina Aguilera.

Para conquistar esse espaço e abrir a agenda de shows do festival, o dueto, cria das periferias paulistanas, venceu o reality show Toca Revela, projeto da “Uol”, no fim do ano passado.

Yori durante apresentação no festival Carnauol, no Allianz Parque @Divulgação/Lainy Cherry

O verso “Eu vivo uma realidade diferente que o mundo não consegue entender, o limite entre o ser e o que eu não deveria ser”, da música Realidade, arrebatou o público e os jurados na final do programa e garantiu aos cantores, além da vitória e a participação no musical, a gravação de um EP.

A canção fala sobre a vivência de crescer nas periferias enquanto jovem negro e lidar com a leitura precoce da própria da sexualidade e identidade, sem compreender os significados.

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“A nossa conexão preta dentro desse contexto se assemelha muito. Nós viemos de um lugar muito rico de cultura, mas que as pessoas insistem em invisibilizar. Por isso nós pensamos todo nosso som, nossa estética, nosso nome como forma de mostrar que é possível ser livre”, afirma Fah Lyma.

YORI

Na mitologia do Candomblé Jeje, a palavra ‘Yori’ carrega a essência dos gêmeos, conhecidos popularmente como Ibejis, ou Cosme e Damião. Essas entidades se completam nas diferenças e transmitem o equilíbrio, o que traduz o sentimento da dupla ao notar que em sua dualidade, as vozes se entrelaçam em harmonia.

Criao no extremo leste de São Paulo, Fagner Lyma sempre sonhou em ser artista. Na infância, entre risos e espelhos, imitava estrelas, com um brilho especial por Jacarézinho, do ‘É o Tchan’. O palco, mesmo que improvisado, já era o lugar dele.

O destino, com suas voltas inesperadas, o levou a uma produtora, onde entrou como bailarino. No intervalo de um ensaio com backing vocals foi descoberto cantando sem pretensão.

Ele lembra que o primeiro show foi em uma Fundação Casa, antiga Febem, onde a voz ecoou entre muros altos e olhares carregados de histórias difíceis. O evento fazia parte de um projeto social que buscava ressocializar jovens, mas talvez, naquele dia, quem tenha saído transformado foi ele.

Fah Lyma é cantor e compositor, cria do Itaim Paulista @Divulgação/Lainy Cherry

O tempo trouxe um contrato de cinco anos com a produtora, um palco sem cachê e muitas canções de todos os ritmos. Após sofrer outros golpes no meio artístico, ele se jogou em novos caminhos e migrou para a área de Recursos Humanos, em que atua até hoje.

‘Sendo uma pessoa da periferia, eu não me via na opção de viver apenas de sonho, então me joguei no mercado tradicional de trabalho’

Em um concurso de karaokê, entre vozes desconhecidas, conheceu Titica, rainha angolana do Kuduro, que estava no Brasil para gravar com BaianaSystem. Ali, portas se abriram e parcerias floresceram, uma delas foi com Insane Scorpion, nasceu ‘A Sós’, e com Floro G, o grito sincero de ‘Fracasso’.

O The Voice, reality musical da TV Globo, em 2021, também cruzou o caminho de Fagner: passou na primeira seleção, mas quando chegou sua vez, as equipes estavam fechadas. Essa frustração se tornou combustível para buscar mais conexões com pessoas do mundo da música e assim conheceu Arapê Milk, que lhe apresentou Nego Lias de forma inesperada.

Fagner Lyma, aos nove meses, ao lado dos irmãos Anderson e Vanessa @Arquivo pessoal

Arapê Malik é produtor musical e ligou para Fah Lyma pedindo “socorro” para cobrir um backing vocal que havia “sumido”. Lyma aceitou, e ao chegar ao ensaio encontrou Nego Lias, o backing vocal que reapareceu. Naquele instante, ao cantarem juntos, perceberam a conexão.

Nascido e criado no Capão Redondo, na zona sul da capital paulista, Elias carrega nas raízes o som de uma família de musicistas evangélicos. O avô, mestre de sopros, ensinava trombone, saxofone, trompete e teoria musical para todos na igreja, menos para aqueles de dentro de casa. O conhecimento, ali, parecia uma herança trancada.

Nego Lias é cantor, compositor e musicista @Divulgação/Lainy Cherry

Elias encontrou a chave em uma brincadeira. Um dia, em um impulso despretensioso, decidiu cantar Nos Braços do Pai’, tentando alcançar os agudos da cantora Ana Paula Valadão. O momento, que começou como uma simples imitação, virou um marco.

Ser autodidata não era uma escolha, mas uma necessidade. Na família, o dom era uma obrigação silenciosa, sem guias nem mapas. Elias teve que trilhar o próprio caminho, errando, tentando, até conquistar seu espaço na banda da igreja.

Mas enquanto sua voz ganhava força, seus trejeitos chamavam atenção de forma indesejada. O que deveria ser expressão virou motivo de repressão, em forma de agressões físicas e psicológicas.

‘Sofri muito por ser muito afeminado, espalhafatoso, expansivo e nada disso é sexual, eu tinha quatro anos de idade. A sociedade cria um monstro em torno da homoafetividade’

Desde pequeno, enfrentou repressão por sua expressividade e foi expulso de uma igreja por conta de sua orientação sexual. Tentou outras, buscando aceitação e encontrou o mesmo preconceito. Estudou direito no Mackenzie, com bolsa integral pelo ProUni, mas não concluiu o curso por enfrentar o racismo. Acabou expulso de casa por ser gay.

Elias Junior, aos quatro anos, criado no Capão Redondo, na zona sul da capital paulista @Arquivo pessoal

Deslocado de muitos espaços, encontrou na música a única constante. Ao deixar a igreja, abriu as portas para novos sons. Descobriu Djavan, mergulhou em melodias que falam de liberdade, de amor sem fronteiras. Cantou no metrô, transformando vagões em palcos e multidões apressadas em plateias silenciosas. A rua foi escola, palco e lar. Para Elias, o metrô trouxe experiência e novos aprendizados.

“O metrô me trouxe essa experiência de olhar pro público com outros olhos. Eu levava meu trabalho sem nenhuma expectativa, mas muito mais com o olhar de quem tá aqui pra fazer as pessoas felizes, porque dessa forma encontrava alegria também”, lembra Elias.

Dupla se formou em 2022 e aposta em harmonias vocais para conquistar o público @Divulgação/Lainy Cherry

A dedicação deu frutos. Elias conquistou o 3º lugar na Batalha PSA, na zona sul, e lançou dois singles: ‘Decola’ e ‘Fight – Me Anima’, em parceria com Billy Waah. Nesse caminho de encontros e descobertas conheceu Fagner e, a partir daí, sua história continuou a ser escrita.

Nego Lias tinha uma canção pré-pronta e pediu a ajuda de Fah para completar. Assim nasceu ‘Anáguas’. Eles fizeram sua primeira apresentação na inauguração de uma nova sede do bar Mamadi Food.

Os dois hoje contam com o apoio da família. “A arte é um chamado na vida do Elias, é algo genuíno que vem do coração. Hoje eu só sinto orgulho e gratidão por ver o sonho dele se realizando”, diz Joyce Campos, irmã de Elias. “Ele vive isso intensamente, respira música e no que depender de nós (família) sempre terá apoio”, diz Cleide Lyma, mãe de Fagner.

Próximos shows

Quando: Sábado, 08/03, às 18h: Pocket Show YORI no Slam da Fabrica de Cultura do Capão Redondo

Quando: 08/03 às 22h: Show da banda Ultrasoul no Bourbon Street Moema.

Agência Mural

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