O pensamento rápido e o devagar de Tati Bernardi

A produção cultural passa por um período em que a literatura parece ter baixado o TikTok. Isso porque o mundo digital alterou o modo como escrevemos e lemos. Assim embaralhou critérios pelos quais julgamos as obras literárias feitas hoje. A linguagem veloz das redes sociais, da internet, invadiu o terreno da ficção, obrigando crítica e leitores a recalibrar os seus instrumentos de leitura. Quem ainda lê com régua antiga pode não perceber que existe um método no caos e no falatório digital.

O livro “A Boba da Corte” (2025), de Tati Bernardi, é um artefato dessa nova paisagem narrativa. Parece nascido das redes, criado no ruído e na velocidade, mas se ancora numa inteligência sensível e no olhar treinado para as contradições sociais brasileiras. Tati vem da publicidade, produz podcasts, tem coluna de imprensa e está nas mídias sociais. Sua literatura, portanto, é atravessada por todas essas linguagens, a do meme e a da memória, da crônica, mas sobretudo o pensar rápido e o devagar.

A Boba da Corte, de Tati Bernardi (Fósforo Editora, 104 páginas)

O pensamento rápido — expressão cunhada por Daniel Kahneman — se destaca na superfície do livro. Aparece nas piadas abruptas, na acidez com que descreve os rituais da classe média alta paulistana, no deboche contra os “aristogatos”, os herdeiros de uma cultura intelectualizada que se permite ironizar o dinheiro porque jamais lhe faltou. Com a agilidade de um bom tuíte, a autora expõe contradições de classe, obsessões culinárias e modos de distinção social, estética e política.

Mas o que torna o livro mais interessante é o outro modo que o atravessa, o pensamento devagar. Ele emerge quando a narrativa abandona o sarcasmo e mergulha na memória. O texto se abre à melancolia, à observação minuciosa do espaço urbano e da genealogia social. O contraste entre a Zona Leste operária de onde veio a narradora e os bairros como Higienópolis ou Perdizes, por onde ela hoje circula, revela mais do que uma diferença geográfica. Trata-se do abismo simbólico entre mundos.

Nos dois primeiros capítulos — uma festa de “intelectuais cool” na rua Maranhão e as lembranças de infância no Largo Maranhão —, já se delineia a tensão fundamental do livro. O mal-estar diante do mundo em que a narradora se inseriu, e a sombra persistente do mundo de onde ela veio. É nesse ponto que a autoficção de Tati Bernardi adquire potência. Ao mesmo tempo que alude de forma clara à sua biografia, a autora desenha um espaço ambíguo entre exposição e anonimato, identidade e persona.

A linguagem direta, por vezes deliberadamente vulgar, pode chocar leitores acostumados a uma elegância esperada de uma obra literária, com letras maiúsculas. Mas é exatamente a tensão que define o estilo de Tati Bernardi. Ela escreve com o ouvido treinado na oralidade digital, mas a inteligência é certamente moldada pela vivência real, concreta, em bairros e famílias que raramente aparecem com nitidez na literatura. Ela é uma intrusa que invade e ocupa outras espaços simbólicos da cidade. 

A ironia nunca é gratuita no livro, pois é uma forma de sobrevivência da narradora. Muitas vezes dá para ouvir seu grito. Ao ironizar os que podem abrir mão do dinheiro, ela reafirma o peso que o dinheiro tem e teve em sua trajetória. Nesse gesto, remete a uma linhagem literária de autores brasileiros que também enxergaram com nitidez os baixos instintos da classe média e suas mitologias de ascensão. No fundo, “A boba da corte” é um livro profundamente contemporâneo. 

Giorgio Agamben diz que o contemporâneo sabe enxergar a escuridão do seu tempo, sem iluminá-la com soluções fáceis. Tati Bernardi não oferece luz, mas sim um foco. Um foco sobre o que existe de cômico, patético e cruel na vida urbana, nas atrocidades brasileiras (os homens cordiais) e nas formas de subjetividade que brotam do caos digital. Seu livro, entre o riso e a tristeza, é um exemplo de como se pode escrever hoje e de como ainda é possível pensar devagar em meio à gritaria digital. 

O pensamento rápido e o devagar de Tati Bernardi

A produção cultural passa por um período em que a literatura parece ter baixado o TikTok. Isso porque o mundo digital alterou o modo como escrevemos e lemos. Assim embaralhou critérios pelos quais julgamos as obras literárias feitas hoje. A linguagem veloz das redes sociais, da internet, invadiu o terreno da ficção, obrigando crítica e leitores a recalibrar os seus instrumentos de leitura. Quem ainda lê com régua antiga pode não perceber que existe um método no caos e no falatório digital.

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