Acidentes com cerol: como é a investigação e quais as punições?

Cerol em linha de pipaReprodução

No início deste mês, um menino de 7 anos morreu em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, após um acidente com linha de cerol. A criança saiu de casa para andar de bicicleta, encontrou uma pipa caída na rua, enrolou a linha no peito e no pescoço, e, ao pedalar, o fio enroscou na bicicleta. Com isso, o menino sofreu um ferimento grave e não sobreviveu.

O caso acende o alerta sobre os acidentes relacionados ao uso de cerol e a chamada linha chilena. Esta reportagem do Portal iG busca entender o panorama desses casos: os números, como são investigados e quais as penas.

Antes de mais nada: o que é o cerol e por que é considerado perigoso?

De acordo com informações da campanha nacional “Cerol Não”, criada pelo jornalista Robson Moraes Almeida em 2004, o cerol é uma mistura de cola de madeira com vidro moído, aplicada nas linhas de pipas para cortar a linha de outros praticantes em competições.

Existem outras variações, como a linha chilena, feita com pó de quartzo ou de ferro, ainda mais abrasiva e capaz de conduzir eletricidade ao encostar em fios de alta tensão. Proibido no Brasil, o cerol oferece riscos para aqueles que estão nas ruas e nas estradas, ao atingir regiões sensíveis do corpo, como o pescoço, e causar acidentes fatais.

De acordo com Robson, que também já foi vítima de um acidente com cerol, embora exista uma legislação que proíba o uso dessas linhas, ela ainda apresenta algumas lacunas que dificultam a fiscalização.

“Tem lei que proíbe o uso, mas não proíbe a venda e o armazenamento. Existe muita brecha”, explica em entrevista à reportagem. Para o jornalista, a falta de fiscalização e o conflito de interesses entre os praticantes são fatores que favorecem a permanência do uso desse tipo de linha.

No Brasil, não há como saber a dimensão do problema

Os casos como o de Ribeirão Preto não são isolados. Dados apresentados pela campanha “Cerol Não” ao Portal iG apontam que, no ano de 2023, foram 276 casos de acidentes com linhas cortantes, sendo 222 não fatais e 54 fatais.

Minas Gerais lidera com 85 vítimas, seguido de São Paulo, com 47 casos. É importante destacar que esses dados não refletem a totalidade dos casos no país. Eles são fruto de registros específicos, que podem mudar conforme notificações e denúncias em cada estado e, consequentemente, gerar subnotificação e falta de padronização na coleta.

A pedido do Portal iG, o Hospital João XXIII, em Belo Horizonte – referência nacional no atendimento a traumas – fez um levantamento que revela que, só em 2023, foram registrados 28 atendimentos de vítimas feridas por linhas cortantes. Em 2024, o número subiu para 32. E até maio deste ano, já são seis casos.

Vale dizer que a própria instituição também reforçou à reportagem que esses números representam casos graves, que exigiram atendimento de alta complexidade. Ou seja, não refletem o total de acidentes a nível nacional, já que grande parte das ocorrências é atendida em unidades de pronto atendimento (UPAs) ou hospitais regionais. Além disso, trata-se de um levantamento geograficamente restrito à área de atuação da unidade.

Competição de pipasReprodução/Câmara Municipal de Ariquemes/RO

“A gente [da Cerol Não] não tem a intenção de proibir ninguém de soltar pipa. Não, soltar pipa é legal, é lúdico, é bom, é o contato aí entre pais e filhos, é uma coisa muito bacana. Só que usar o cerol já estraga a brincadeira e pode causar acidentes com vítimas fatais ou cicatrizes que podem ficar para o resto da vida”, diz Robson.

Além dos acidentes, problema afeta a rede elétrica

O uso do cerol também é um dos vilões da rede elétrica. Somente na região de Ribeirão Preto e Franca, foram 277 quedas de energia causadas por linhas de pipas em 2024, conforme informado pela CPFL ao Portal iG. Ao todo, a concessionária registrou 1.465 ocorrências do tipo na região este ano.

Na Cemig, em Minas Gerais, foram mais de 850 ocorrências e 247 mil clientes afetados só em 2025, segundo nota encaminhada ao iG.

Como é a investigação de casos assim?

O Portal iG procurou a Delegacia Seccional de Polícia de Ribeirão Preto para entender como são conduzidas as investigações em casos que envolvem o uso de cerol e linha chilena. Em resposta, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) explicou que a Polícia Militar realiza fiscalizações preventivas e atua tanto em flagrantes quanto mediante denúncias.

Segundo a nota, “quando há flagrante do uso ou denúncia de venda de cerol, a equipe realiza a apreensão do material e encaminha os envolvidos ao distrito policial para registro de boletim de ocorrência”.

A venda do produto ou de qualquer material cortante aplicado em linhas é considerada crime, conforme a lei estadual 17.201/2019. Já o uso do cerol pode ser enquadrado no artigo 132 do Código Penal, que trata da exposição da vida ou saúde de terceiros a perigo direto e iminente.

“Nesse caso, a pena prevista é de três meses a um ano de prisão, e o infrator responde por termo circunstanciado”, complementa a SSP.

O que diz a legislação?

“Quando ocorre um acidente com cerol que resulta em morte, a depender do caso concreto, pode se configurar como homicídio culposo, aquele em que não há intenção de matar, mas há imprudência, negligência ou imperícia”, explica o advogado criminalista Israel Filipe Fonseca Rosa ao Portal iG.

Ele alerta que, em casos mais graves, é possível até o enquadramento como homicídio doloso, na modalidade de dolo eventual.

“Se a pessoa, mesmo sabendo do risco, assume esse risco, ela pode ser responsabilizada como se tivesse a intenção de matar. E aí a pena pode chegar a até 20 anos de reclusão”, destaca.

O advogado também lembra que pais ou responsáveis podem ser responsabilizados criminalmente se forem omissos ao uso do cerol por menores de idade, com base no artigo 13, §2º, do Código Penal.

“Se há o dever de cuidado, proteção ou vigilância, e esse dever não é cumprido, a omissão pode gerar responsabilidade penal”, afirma.

Além disso, ele destaca que o uso do cerol ou da linha chilena, mesmo que não resulte em lesão, já pode ser enquadrado como crime de perigo, previsto no artigo 132. Na esfera civil, segundo ele, as vítimas ou suas famílias podem cobrar indenizações.

Pipas enroscadas na rede elétricaAgência Minas

“O responsável pode ser obrigado a reparar danos materiais, morais e até estéticos, caso a vítima fique com alguma sequela visível, que gere sofrimento psicológico”, completa.

Contatos sem retorno

O Portal iG procurou o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HCFMRP) e foi informado que a instituição não faz o levantamento de ocorrências relacionadas ao uso de cerol e linhas cortantes.

A mesma resposta foi dada pelo Ministério da Saúde, que informou que os casos envolvendo cerol ou linha chilena não são classificados na tabela de CID (Classificação Internacional de Doenças) e, por isso, não são contabilizados. O órgão orientou buscar dados com as concessionárias de energia, que também costumam registrar esse tipo de ocorrência.

A reportagem entrou em contato com a Neoenergia Elektro, que atende algumas regiões do estado de São Paulo, para falar sobre acidentes na rede elétrica relacionados às linhas cortantes, mas não obteve retorno.

O Portal iG também procurou a Associação Brasileira de Pipas para debater a frequência de acidentes com linhas cortantes, como é monitorado o uso atual de cerol e linha chilena entre praticantes, as principais dificuldades no combate a essa prática e as possíveis soluções. No entanto, a instituição não respondeu às perguntas até o fechamento da matéria. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

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