Mesmo com 900 mil autistas em salas comuns, escolas não têm protocolo seguro para lidar com episódios de agressividade

Docentes não recebem formação adequada para agir da maneira correta quando aluno entra em crise. Casos recentes mostram tentativas perigosas de contenção, não permitidas no Brasil, que podem colocar o professor e a própria criança em risco. Entenda importância da inclusão escolar efetiva. Em apenas dois anos, entre 2022 e 2024, o número de alunos com autismo matriculados em escolas comuns mais do que dobrou no Brasil: saltou de 405 mil para 884,4 mil, mostram os dados do Censo Escolar, divulgados em abril pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
O avanço da inclusão, previsto em lei, obviamente tem de ser celebrado: a convivência de estudantes com e sem deficiência traz benefícios sociais e cognitivos a todos da turma. Mas é preciso lembrar que não basta garantir a presença de uma criança autista na sala de aula comum — é dever das redes de ensino e das escolas fazer adaptações no currículo, no espaço físico e nas avaliações, além de dar suporte aos professores e formá-los adequadamente.
Notícias como estas a seguir, publicadas no g1 neste ano, evidenciam um dos muitos obstáculos para que a educação seja, de fato, inclusiva: instituições de ensino, em geral, não sabem lidar com episódios de agressividade que alguns indivíduos com TEA podem apresentar. Veja:
Professora senta em aluno autista para imobilizá-lo, e família registra boletim de ocorrência
Criança com autismo é agredida por professora e impedida de se alimentar em SP
Criança autista agredida por professor de capoeira relatou episódio à mãe: ‘Me deu uma rasteira’
🚨Quando a rede de ensino e o colégio não proporcionam a formação adequada aos funcionários, os dois cenários possíveis tornam-se arriscados:
se ninguém intervir, o aluno com TEA pode bater a cabeça na parede, por exemplo, e se ferir gravemente;
caso alguém use força física para segurar o estudante, pode machucá-lo e desestabilizá-lo ainda mais.
➡️Todos ficam inseguros: os pais do aluno autista temem que ele se machuque, os familiares dos coleguinhas podem desenvolver uma resistência à presença de pessoas com deficiência na sala de aula, e os professores trabalham sob (mais uma) condição de estresse.
Por isso, especialistas defendem a urgência em preparar toda a comunidade escolar para agir da maneira correta e no momento certo, de forma a evitar o início de possíveis crises (veja estratégias mais abaixo).
“Os alunos que estão hoje na escola estariam institucionalizados nos anos 1980. Felizmente, conseguimos sair do modelo segregado”, afirma Meca Andrade, psicóloga que é referência internacional em intervenção comportamental.
“Se formos incluir uma pessoa que tem dificuldades comportamentais que trazem risco para ela mesma e para as outras, sem médicos por perto, precisaremos de habilidades de manejo. Essa é uma nova realidade, que vai chegar também ao mercado de trabalho.”
Alcinda Castor, professora da rede pública de São Paulo, é mãe de um homem autista de 28 anos. “Quando ele era menor, precisava de até 3 adultos para contê-lo na escola. Ninguém recebeu preparo para lidar com isso”, diz. “Ele ficou afastado por 6 meses, porque ninguém mais conseguia segurá-lo.”
Como docente, ela afirma também que nunca recebeu a devida capacitação para lidar com crises de estudantes.
“Os cuidadores trocam fraldas, as estagiárias preparam as atividades, mas é raro algum profissional ter especialização para saber agir nessas horas. Até hoje, quando meu filho fica assim, eu mesma me tranco no banheiro e espero passar.”
Nesta reportagem, veja:
qual é a conduta mais indicada diante das crises;
que atitudes podem evitar o agravamento desses episódios;
como a união entre família e escola pode ser fundamental na prevenção dos picos de agressividade;
que tipo de formação precisa ser oferecida aos professores e demais funcionários.
🚨🚨Atenção: o espectro de sintomas do autismo é amplo e não permite generalizações. Há comportamentos mais comuns, como dificuldades de interação social, problemas na comunicação e alteração nos interesses (como resistência a mudanças de rotinas ou maneiras diferentes de brincar). O “guarda-chuva” do transtorno é amplo: pode abarcar uma criança com nível de suporte 1, por exemplo, que é independente e oralizada, mas que sofre em ambientes ruidosos, e outra de nível 3, que não desenvolveu a fala e que não deixou de usar fraldas.
Os episódios de agressividade nem sempre são manifestados: estudos científicos, sem chegar a um consenso, citam prevalências que vão de 8% a 68% na infância. A causa dessas crises também varia — pode ser desencadeada por um distúrbio sensorial, por exemplo, ou pela impossibilidade de comunicar um sentimento. E não é nada relacionado a “caráter”: é preciso combater o estigma de que autistas são agressivos. O fato de entrarem em crise, seja com qual frequência for, não significa que sejam insensíveis ou incapazes de amar.
O que diz o MEC? Ao g1, o Ministério da Educação afirma que os cursos de formação oferecidos aos professores focam nas questões pedagógicas, sem priorizar linhas terapêuticas específicas. Diz também que “não cabe nem é desejável uma orientação geral para todos os estudantes com determinada condição diagnóstica” e que o indicado é fazer estudos de caso individuais. O foco, segundo a pasta, deve ser eliminar as barreiras escolares que possam contribuir para as situações de crise.
Qual é a postura correta?
O vídeo abaixo, gravado em 26 de março, em uma escola particular de Campinas (SP), mostra uma professora sentada em cima de um aluno autista para imobilizá-lo. Duas semanas depois, em 11 de abril, a família da criança registrou um boletim de ocorrência contra a docente.
Segundo o colégio, não houve agressão, e a contenção exercida estava “em conformidade com procedimento padrão”.
Professora senta sobre aluno autista para imobilizá-lo; caso vai parar na polícia
Na mesma semana, o Fantástico mostrou outro caso (vídeo abaixo), desta vez, no Rio de Janeiro: um aluno autista de 11 anos, após chutar um equipamento no tatame da escola, levou uma rasteira do professor de capoeira. A mãe denunciou o caso como agressão, enquanto a defesa do docente alegou que “a intervenção consistiu em uma técnica de imobilização, com o único objetivo de impedir novas agressões” e que foi isso o que “garantiu que a criança não sofresse qualquer tipo de lesão”.
Vídeo mostra agressão de professor a criança autista em escola
E é aí que entra um problema jurídico comum nessas situações: no Brasil, não existe nenhuma regulamentação sobre técnicas de contenção em escolas.
“É um grande desafio: equilibrar a garantia de que ninguém atente contra a segurança de si próprio e dos demais e, ao mesmo tempo, preservar o direito da criança de não ter seu espaço invadido nem de ser submetida a um tratamento degradante ou desumano. É muito difícil”, explica a defensora pública Renata Tibyriça.
➡️Meca Andrade, especialista em manejo não segregado, afirma que não existe manobra de contenção adequada quando não há uma normatização no país.
“Não dá pra dizer que uma técnica está correta se não houve monitoramento de implementação nem treinamento técnico. Qualquer que tenha sido o procedimento, ele já é incorreto, porque não há processos, diretrizes, preparo ou prestação de contas. Nada”, afirma.
“Se você tiver condições seguras de fazer o procedimento de maneira humana, ética e segura para o indivíduo [autista], você implementa de acordo com o protocolo. Mas isso em outro país. Não tem protocolo aqui no Brasil.”
O ideal, então, é formar os profissionais para que eles consigam evitar que a crise atinja seu ápice. Conhecendo cada criança (e mantendo um diálogo constante com a família dela), é possível entender quais são os primeiros sintomas manifestados — agitação repentina e mudança de expressão facial, por exemplo.
“A análise de comportamento humano é um caminho mais fácil. Ela permite que os professores evitem a necessidade de segurar a criança, porque isso traz risco para todos”, diz Fábio Oliveira, diretor do Centro de Apoio ao Autista de Osasco e professor de atendimento educacional especializado (AEE).
“Muito antes de pensar em trabalhar com a força, é preciso entender quais os mecanismos que levaram o indivíduo à crise. Percebeu que o aluno vai entrar em surto? É preciso intervir.”
⌛Imagine uma ampulheta: o “leque” de alternativas de como agir é muito maior no começo do processo. Conforme o tempo passa, o vidro afunila — no auge da crise, ele é bem estreito, com pouquíssimas opções de intervenção.
Quais atitudes podem evitar o agravamento dos episódios de agressividade?
As estratégias não invasivas devem ser sempre priorizadas (ainda mais no Brasil, em que não há protocolo ou regulamentação para o uso de força física). O ideal é que os professores e outros funcionários da escola recebam capacitação para praticar :
🟦 Desaceleração
O que é:
Conjunto de técnicas para acalmar a pessoa antes que a crise piore. São formas de ajudar na recuperação do controle emocional.
Exemplos de estratégias:
Reduzir estímulos no ambiente (luzes, barulho, multidão).
Usar tom de voz calmo e pausado.
Oferecer atividades alternativas.
Permitir que a pessoa vá para um “cantinho de regulação”.
Validar sentimentos com frases como: “Eu sei que isso está difícil para você”.
Quando aplicar:
Nos primeiros sinais de irritação, frustração ou sobrecarga sensorial — antes que haja risco de agressão ou fuga.
🟩 Evasão
O que é:
Técnicas físicas não agressivas e não invasivas usadas para evitar ser ferido ou ferir a pessoa, quando ela já está em um comportamento perigoso.
Exemplos de estratégias:
Posicionar-se em diagonal, fora do alcance dos braços e pernas.
Nunca ficar entre a pessoa e a porta.
Não encostar nela, e sim tentar guiá-la verbalmente.
Tirar outros alunos do ambiente com discrição (sugerindo, por exemplo, que todos vão ao parque).
Retirar objetos que possam oferecer perigo.
Quando aplicar:
Durante o início de um comportamento mais explosivo, quando há risco de agressão, mas ainda é possível evitar contato físico direto.
União entre família e escola: um caminho para a prevenção de crises
Joana Portolese, neuropsicóloga do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e pesquisadora da Universidade de São Paulo, explica que é possível desenvolver um trabalho que coíba as ocorrências de episódios de agressividade.
“Buscar o desenvolvimento da linguagem, não necessariamente a falada, pode ajudar a diminuir esses comportamentos. A agressividade costuma ser maior justamente nos pacientes que têm prejuízos cognitivos”, explica a especialista.
Existem recursos de comunicação assistiva que auxiliam autistas não verbais a expressar algum incômodo ou desejo — como cartões sinalizadores de emoções e de pedidos, tablets e gestos.
Rita Hernandes, por exemplo, é mãe de um autista não verbal, de grau de suporte 3.
“Ele é extremamente agressivo quando tem um surto. Só consigo controlar se eu sentar para conversar com ele, sem falar muito, deixando que ele extravase o que está sentindo. Eles não têm a [habilidade da] comunicação, entram em ‘parafuso’ com eles mesmos”, diz.
Ter acesso a todo o histórico de saúde e de comportamento do aluno pode facilitar o trabalho da escola. “No ato da matrícula, já é indicado fazer uma entrevista estruturada [com os responsáveis] para entender como aquele indivíduo funciona. Se ele não for verbal, é assim que serão extraídas as informações principais”, afirma o especialista Fábio Oliveira.
“Se não houver uma ‘dica’ de ferramenta para controlar a pessoa, o ideal é deixá-la em um ambiente fora de risco e, então, chamar a família. Se ninguém aparecer, chamamos o Samu psiquiátrico. Ela não pode bater a cabeça.”
Em resumo, é interessante que a família e a escola mantenham um diálogo constante sobre:
o que costuma desestabilizar a criança ou o jovem (alguma alteração sensorial, como um cheiro específico ou barulho?);
quais as formas de comunicação mais eficazes para detectar os sentimentos do aluno;
qual deve ser, na escolha dos pais, a conduta ideal diante de uma crise (chamá-los imediatamente? Acionar um serviço de saúde?).
“É importante pensar: independentemente das questões, essas coisas [episódios de agressividade] acontecem. Como lidar com isso? Se capacitando para lidar com isso. As equipes não podem ficar desassistidas”, afirma Joana, do Hospital das Clínicas.
“Já ouvi familiares falando que ‘tem um aluno autista na classe que bate em todo mundo’. Ou seja, os pais dos outros se sentem ameaçados e exigem da escola medidas mais duras. Mas, sem capacitação, não há como garantir a segurança de todos. Isso é uma realidade, não é julgamento.”
Que tipo de formação precisa ser oferecida?
O ideal, segundo Meca Andrade, é que sejam oferecidos cursos aos profissionais para que eles saibam agir no “começo da ampulheta”.
“Não tem como ensinar à distância e a baixo custo a forma menos arriscada de segurar um aluno. Precisaria de um treinamento sofisticado. Por isso, o ideal é treinar para desaceleração e evasão. Se o Estado conseguir que isso seja acessível para todos os professores, o ganho será enorme”, diz.
“O básico é explicar que não é bom usar chinelo ou sapato com sola de madeira nem encerar o chão da escola. Utilizar EPIs discretos e prender o cabelo também são medidas de auxílio que não envolvem riscos”, afirma.
Políticas públicas que favoreçam a formação em análise de comportamento também são importantes, dizem os especialistas ouvidos pelo g1. “Eu tenho formação em técnicas de segurança. Mas, ainda assim, evito a necessidade de contenção. O ideal é focar na prevenção. Isso precisa ser ensinado”, diz Fábio.
Em um ano, 200 mil alunos com autismo foram matriculados em escolas comuns
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Mesmo com 900 mil autistas em salas comuns, escolas não têm protocolo seguro para lidar com episódios de agressividade

Docentes não recebem formação adequada para agir da maneira correta quando aluno entra em crise. Casos recentes mostram tentativas perigosas de contenção, não permitidas no Brasil, que podem colocar o professor e a própria criança em risco. Entenda importância da inclusão escolar efetiva. Em apenas dois anos, entre 2022 e 2024, o número de alunos com autismo matriculados em escolas comuns mais do que dobrou no Brasil: saltou de 405 mil para 884,4 mil, mostram os dados do Censo Escolar, divulgados em abril pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
O avanço da inclusão, previsto em lei, obviamente tem de ser celebrado: a convivência de estudantes com e sem deficiência traz benefícios sociais e cognitivos a todos da turma. Mas é preciso lembrar que não basta garantir a presença de uma criança autista na sala de aula comum — é dever das redes de ensino e das escolas fazer adaptações no currículo, no espaço físico e nas avaliações, além de dar suporte aos professores e formá-los adequadamente.
Notícias como estas a seguir, publicadas no g1 neste ano, evidenciam um dos muitos obstáculos para que a educação seja, de fato, inclusiva: instituições de ensino, em geral, não sabem lidar com episódios de agressividade que alguns indivíduos com TEA podem apresentar. Veja:
Professora senta em aluno autista para imobilizá-lo, e família registra boletim de ocorrência
Criança com autismo é agredida por professora e impedida de se alimentar em SP
Criança autista agredida por professor de capoeira relatou episódio à mãe: ‘Me deu uma rasteira’
🚨Quando a rede de ensino e o colégio não proporcionam a formação adequada aos funcionários, os dois cenários possíveis tornam-se arriscados:
se ninguém intervir, o aluno com TEA pode bater a cabeça na parede, por exemplo, e se ferir gravemente;
caso alguém use força física para segurar o estudante, pode machucá-lo e desestabilizá-lo ainda mais.
➡️Todos ficam inseguros: os pais do aluno autista temem que ele se machuque, os familiares dos coleguinhas podem desenvolver uma resistência à presença de pessoas com deficiência na sala de aula, e os professores trabalham sob (mais uma) condição de estresse.
Por isso, especialistas defendem a urgência em preparar toda a comunidade escolar para agir da maneira correta e no momento certo, de forma a evitar o início de possíveis crises (veja estratégias mais abaixo).
“Os alunos que estão hoje na escola estariam institucionalizados nos anos 1980. Felizmente, conseguimos sair do modelo segregado”, afirma Meca Andrade, psicóloga que é referência internacional em intervenção comportamental.
“Se formos incluir uma pessoa que tem dificuldades comportamentais que trazem risco para ela mesma e para as outras, sem médicos por perto, precisaremos de habilidades de manejo. Essa é uma nova realidade, que vai chegar também ao mercado de trabalho.”
Alcinda Castor, professora da rede pública de São Paulo, é mãe de um homem autista de 28 anos. “Quando ele era menor, precisava de até 3 adultos para contê-lo na escola. Ninguém recebeu preparo para lidar com isso”, diz. “Ele ficou afastado por 6 meses, porque ninguém mais conseguia segurá-lo.”
Como docente, ela afirma também que nunca recebeu a devida capacitação para lidar com crises de estudantes.
“Os cuidadores trocam fraldas, as estagiárias preparam as atividades, mas é raro algum profissional ter especialização para saber agir nessas horas. Até hoje, quando meu filho fica assim, eu mesma me tranco no banheiro e espero passar.”
Nesta reportagem, veja:
qual é a conduta mais indicada diante das crises;
que atitudes podem evitar o agravamento desses episódios;
como a união entre família e escola pode ser fundamental na prevenção dos picos de agressividade;
que tipo de formação precisa ser oferecida aos professores e demais funcionários.
🚨🚨Atenção: o espectro de sintomas do autismo é amplo e não permite generalizações. Há comportamentos mais comuns, como dificuldades de interação social, problemas na comunicação e alteração nos interesses (como resistência a mudanças de rotinas ou maneiras diferentes de brincar). O “guarda-chuva” do transtorno é amplo: pode abarcar uma criança com nível de suporte 1, por exemplo, que é independente e oralizada, mas que sofre em ambientes ruidosos, e outra de nível 3, que não desenvolveu a fala e que não deixou de usar fraldas.
Os episódios de agressividade nem sempre são manifestados: estudos científicos, sem chegar a um consenso, citam prevalências que vão de 8% a 68% na infância. A causa dessas crises também varia — pode ser desencadeada por um distúrbio sensorial, por exemplo, ou pela impossibilidade de comunicar um sentimento. E não é nada relacionado a “caráter”: é preciso combater o estigma de que autistas são agressivos. O fato de entrarem em crise, seja com qual frequência for, não significa que sejam insensíveis ou incapazes de amar.
O que diz o MEC? Ao g1, o Ministério da Educação afirma que os cursos de formação oferecidos aos professores focam nas questões pedagógicas, sem priorizar linhas terapêuticas específicas. Diz também que “não cabe nem é desejável uma orientação geral para todos os estudantes com determinada condição diagnóstica” e que o indicado é fazer estudos de caso individuais. O foco, segundo a pasta, deve ser eliminar as barreiras escolares que possam contribuir para as situações de crise.
Qual é a postura correta?
O vídeo abaixo, gravado em 26 de março, em uma escola particular de Campinas (SP), mostra uma professora sentada em cima de um aluno autista para imobilizá-lo. Duas semanas depois, em 11 de abril, a família da criança registrou um boletim de ocorrência contra a docente.
Segundo o colégio, não houve agressão, e a contenção exercida estava “em conformidade com procedimento padrão”.
Professora senta sobre aluno autista para imobilizá-lo; caso vai parar na polícia
Na mesma semana, o Fantástico mostrou outro caso (vídeo abaixo), desta vez, no Rio de Janeiro: um aluno autista de 11 anos, após chutar um equipamento no tatame da escola, levou uma rasteira do professor de capoeira. A mãe denunciou o caso como agressão, enquanto a defesa do docente alegou que “a intervenção consistiu em uma técnica de imobilização, com o único objetivo de impedir novas agressões” e que foi isso o que “garantiu que a criança não sofresse qualquer tipo de lesão”.
Vídeo mostra agressão de professor a criança autista em escola
E é aí que entra um problema jurídico comum nessas situações: no Brasil, não existe nenhuma regulamentação sobre técnicas de contenção em escolas.
“É um grande desafio: equilibrar a garantia de que ninguém atente contra a segurança de si próprio e dos demais e, ao mesmo tempo, preservar o direito da criança de não ter seu espaço invadido nem de ser submetida a um tratamento degradante ou desumano. É muito difícil”, explica a defensora pública Renata Tibyriça.
➡️Meca Andrade, especialista em manejo não segregado, afirma que não existe manobra de contenção adequada quando não há uma normatização no país.
“Não dá pra dizer que uma técnica está correta se não houve monitoramento de implementação nem treinamento técnico. Qualquer que tenha sido o procedimento, ele já é incorreto, porque não há processos, diretrizes, preparo ou prestação de contas. Nada”, afirma.
“Se você tiver condições seguras de fazer o procedimento de maneira humana, ética e segura para o indivíduo [autista], você implementa de acordo com o protocolo. Mas isso em outro país. Não tem protocolo aqui no Brasil.”
O ideal, então, é formar os profissionais para que eles consigam evitar que a crise atinja seu ápice. Conhecendo cada criança (e mantendo um diálogo constante com a família dela), é possível entender quais são os primeiros sintomas manifestados — agitação repentina e mudança de expressão facial, por exemplo.
“A análise de comportamento humano é um caminho mais fácil. Ela permite que os professores evitem a necessidade de segurar a criança, porque isso traz risco para todos”, diz Fábio Oliveira, diretor do Centro de Apoio ao Autista de Osasco e professor de atendimento educacional especializado (AEE).
“Muito antes de pensar em trabalhar com a força, é preciso entender quais os mecanismos que levaram o indivíduo à crise. Percebeu que o aluno vai entrar em surto? É preciso intervir.”
⌛Imagine uma ampulheta: o “leque” de alternativas de como agir é muito maior no começo do processo. Conforme o tempo passa, o vidro afunila — no auge da crise, ele é bem estreito, com pouquíssimas opções de intervenção.
Quais atitudes podem evitar o agravamento dos episódios de agressividade?
As estratégias não invasivas devem ser sempre priorizadas (ainda mais no Brasil, em que não há protocolo ou regulamentação para o uso de força física). O ideal é que os professores e outros funcionários da escola recebam capacitação para praticar :
🟦 Desaceleração
O que é:
Conjunto de técnicas para acalmar a pessoa antes que a crise piore. São formas de ajudar na recuperação do controle emocional.
Exemplos de estratégias:
Reduzir estímulos no ambiente (luzes, barulho, multidão).
Usar tom de voz calmo e pausado.
Oferecer atividades alternativas.
Permitir que a pessoa vá para um “cantinho de regulação”.
Validar sentimentos com frases como: “Eu sei que isso está difícil para você”.
Quando aplicar:
Nos primeiros sinais de irritação, frustração ou sobrecarga sensorial — antes que haja risco de agressão ou fuga.
🟩 Evasão
O que é:
Técnicas físicas não agressivas e não invasivas usadas para evitar ser ferido ou ferir a pessoa, quando ela já está em um comportamento perigoso.
Exemplos de estratégias:
Posicionar-se em diagonal, fora do alcance dos braços e pernas.
Nunca ficar entre a pessoa e a porta.
Não encostar nela, e sim tentar guiá-la verbalmente.
Tirar outros alunos do ambiente com discrição (sugerindo, por exemplo, que todos vão ao parque).
Retirar objetos que possam oferecer perigo.
Quando aplicar:
Durante o início de um comportamento mais explosivo, quando há risco de agressão, mas ainda é possível evitar contato físico direto.
União entre família e escola: um caminho para a prevenção de crises
Joana Portolese, neuropsicóloga do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e pesquisadora da Universidade de São Paulo, explica que é possível desenvolver um trabalho que coíba as ocorrências de episódios de agressividade.
“Buscar o desenvolvimento da linguagem, não necessariamente a falada, pode ajudar a diminuir esses comportamentos. A agressividade costuma ser maior justamente nos pacientes que têm prejuízos cognitivos”, explica a especialista.
Existem recursos de comunicação assistiva que auxiliam autistas não verbais a expressar algum incômodo ou desejo — como cartões sinalizadores de emoções e de pedidos, tablets e gestos.
Rita Hernandes, por exemplo, é mãe de um autista não verbal, de grau de suporte 3.
“Ele é extremamente agressivo quando tem um surto. Só consigo controlar se eu sentar para conversar com ele, sem falar muito, deixando que ele extravase o que está sentindo. Eles não têm a [habilidade da] comunicação, entram em ‘parafuso’ com eles mesmos”, diz.
Ter acesso a todo o histórico de saúde e de comportamento do aluno pode facilitar o trabalho da escola. “No ato da matrícula, já é indicado fazer uma entrevista estruturada [com os responsáveis] para entender como aquele indivíduo funciona. Se ele não for verbal, é assim que serão extraídas as informações principais”, afirma o especialista Fábio Oliveira.
“Se não houver uma ‘dica’ de ferramenta para controlar a pessoa, o ideal é deixá-la em um ambiente fora de risco e, então, chamar a família. Se ninguém aparecer, chamamos o Samu psiquiátrico. Ela não pode bater a cabeça.”
Em resumo, é interessante que a família e a escola mantenham um diálogo constante sobre:
o que costuma desestabilizar a criança ou o jovem (alguma alteração sensorial, como um cheiro específico ou barulho?);
quais as formas de comunicação mais eficazes para detectar os sentimentos do aluno;
qual deve ser, na escolha dos pais, a conduta ideal diante de uma crise (chamá-los imediatamente? Acionar um serviço de saúde?).
“É importante pensar: independentemente das questões, essas coisas [episódios de agressividade] acontecem. Como lidar com isso? Se capacitando para lidar com isso. As equipes não podem ficar desassistidas”, afirma Joana, do Hospital das Clínicas.
“Já ouvi familiares falando que ‘tem um aluno autista na classe que bate em todo mundo’. Ou seja, os pais dos outros se sentem ameaçados e exigem da escola medidas mais duras. Mas, sem capacitação, não há como garantir a segurança de todos. Isso é uma realidade, não é julgamento.”
Que tipo de formação precisa ser oferecida?
O ideal, segundo Meca Andrade, é que sejam oferecidos cursos aos profissionais para que eles saibam agir no “começo da ampulheta”.
“Não tem como ensinar à distância e a baixo custo a forma menos arriscada de segurar um aluno. Precisaria de um treinamento sofisticado. Por isso, o ideal é treinar para desaceleração e evasão. Se o Estado conseguir que isso seja acessível para todos os professores, o ganho será enorme”, diz.
“O básico é explicar que não é bom usar chinelo ou sapato com sola de madeira nem encerar o chão da escola. Utilizar EPIs discretos e prender o cabelo também são medidas de auxílio que não envolvem riscos”, afirma.
Políticas públicas que favoreçam a formação em análise de comportamento também são importantes, dizem os especialistas ouvidos pelo g1. “Eu tenho formação em técnicas de segurança. Mas, ainda assim, evito a necessidade de contenção. O ideal é focar na prevenção. Isso precisa ser ensinado”, diz Fábio.
Em um ano, 200 mil alunos com autismo foram matriculados em escolas comuns
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