Por que Portugal está soltando bovinos e cavalos na natureza


Iniciativa no vale do rio Côa busca recriar ecossistemas que existiam no passado, ampliando biodiversidade e reduzindo riscos de incêndios. O tauros é uma versão criada do auroque, uma espécie extinta de gado bovino
Izabela Cardoso e Fernando Teixeira via BBC
O tauros, uma versão do extinto gado auroque, está sendo introduzido no Vale do Côa, em Portugal.
Em uma manhã fria e enevoada, uma manada de cavalos Sorraia, uma raça local ameaçada de extinção, come capim e pequenos arbustos, com seus corpos curtos e robustos envoltos na névoa do rio Côa, nas montanhas do nordeste de Portugal.
À medida que o sol nasce e a névoa começa a se dissipar, ela revela os profundos desfiladeiros do Vale do Côa, onde abutres e águias nidificam nas falésias.
Mais ao sul, uma manada de grandes bovinos pretos e castanhos, com chifres longos, corre com agilidade. Conhecidos como tauros, esses bovinos são uma versão criada do extinto auroque, o ancestral selvagem da vaca moderna.
Os cavalos e tauros foram soltos pela Rewilding Portugal, uma organização sem fins lucrativos cuja missão é criar um corredor de vida selvagem de 1.200 km² ao longo do rio Côa, melhorando a conectividade de habitats entre o rio Douro, a norte, e a serra da Malcata, a sul.
“Promovemos o retorno de espécies selvagens e substituímos as extintas, como o auroque e o cavalo-bravo”, afirma Pedro Prata, responsável pela Rewilding Portugal.
Desde a sua criação em 2019, a organização já libertou duas manadas de 20 cavalos Sorraia e 15 tauros numa área de cerca de 20 km² para restaurar os processos naturais com pastoreio natural.
O retorno do auroque
Há milhares de anos, os ancestrais selvagens do gado bovino e do cavalo vagavam livremente pela região do Côa, migrando em grandes rebanhos e desempenhando um papel fundamental na manutenção dos ecossistemas de pastagens.
Os animais eram tão importantes que nossos ancestrais decidiram pintar e gravar suas imagens em cavernas e pedras.
Ao longo do Vale do Côa, representações de auroques, cavalos selvagens e outras criaturas que datam de 24 mil anos foram esculpidas nos afloramentos de xisto.
A área abriga uma das maiores concentrações de arte rupestre paleolítica a céu aberto e é reconhecida como Patrimônio Mundial da Unesco.
Com seus chifres longos e corpo maciço, o auroque aparece com destaque nas gravuras. Outrora o maior mamífero terrestre da Europa, o auroque foi extinto no século 17 devido à caça excessiva e à perda de habitat.
O último exemplar da espécie morreu na Polônia em 1627; um dos primeiros casos de extinção registrados.
Mas esforços recentes estão tentando trazer de volta esses poderosos herbívoros. A Rewilding Portugal firmou uma parceria com a Fundação Taurus, uma organização holandesa dedicada à criação de bovinos que possam prosperar nas paisagens selvagens da Europa.
“Queríamos desenvolver um substituto para o que os auroques costumavam ser”, diz o ecologista Ronald Goderie, diretor da Fundação Taurus, que iniciou um programa de reprodução em 2008. Embora os auroques estejam extintos, seus genes sobrevivem no gado doméstico.
A fundação tem usado um método conhecido como cruzamento cruzado para combinar raças de gado no sul da Europa que ainda mantêm algumas das características de seus ancestrais auroques: grande estatura, pernas longas, constituição esbelta e grandes chifres curvados para a frente.
“Combinamos raças primitivas para tentar chegar o mais próximo possível geneticamente do que o auroque já foi”, diz Goderie. O objetivo é criar um bovino selvagem que possa novamente vagar livremente e que esteja preparado para lidar com predadores.
Por milênios, o pastoreio de auroques criou espaços abertos para outras espécies prosperarem. Como o mais próximo do auroque extinto retratado nas gravuras pré-históricas, Goderie afirma que os tauros podem desempenhar uma função ecológica semelhante, vital para a biodiversidade.
“O pastoreio natural levará a mais processos naturais que estão ausentes nos ecossistemas locais, mais habitats e mais biodiversidade”, diz ele.
O tauros é uma versão criada do auroque extinto há muito tempo, o ancestral selvagem da vaca moderna
Diana Takacsova
Restauração ambiental
Prata atravessa em seu jipe um mosaico de florestas de carvalhos e pinheiros, charnecas rochosas e vinhas dispersas, olivais e amendoais ao longo do vale do Côa, parando ocasionalmente para pegar seus binóculos.
“Esta terra é marginal, o solo é pobre e há falta de água. Os verões são muito rigorosos aqui e vão piorar ainda mais com as mudanças climáticas. A paisagem ficará ainda menos adequada para a agricultura”, diz Prata, biólogo que cresceu em uma fazenda perto do rio Côa.
A produção é tão baixa nas encostas rochosas que, nas últimas décadas, muitos agricultores abandonaram o vale, que se tornou um dos lugares menos habitados de Portugal.
Prata também partiu quando jovem em busca de melhores oportunidades no exterior. Mas os motivos pelos quais as comunidades agrícolas partiram também foram o que levou Prata a retornar com uma nova visão para a região. O despovoamento e o abandono das terras tornaram-se uma oportunidade para trazer a natureza de volta.
“Herdamos uma paisagem muito degradada. Por isso, propomos deixar essa paisagem se regenerar por meio da renaturalização”, diz Prata. O objetivo não é recriar o que a paisagem já foi, mas explorar o potencial do que ela pode ser.
Ao reservar terras e libertar espécies-chave, a organização está promovendo o regresso de grandes herbívoros, necrófagos e predadores, como águias-imperiais, abutres, lobos e íbex-ibéricos e o lince-ibérico – o felino selvagem mais ameaçado do mundo.
A iniciativa em Portugal faz parte de esforços mais amplos liderados pela Rewilding Europe, uma organização sem fins lucrativos criada em 2011 que apoia o regresso da vida selvagem e a restauração de processos ecológicos em todo o continente.
Ao contrário da conservação tradicional, a renaturalização não é impulsionada pela gestão humana, mas sim por processos naturais.
“Não se trata apenas de deixar a natureza em paz”, diz Prata. Em vez disso, a esperança é que a soltura de grandes herbívoros catalise alguns dos processos naturais que estão ausentes e crie as condições que permitam que outras espécies prosperem, explica ele.
“Os grandes herbívoros são engenheiros. Eles projetam a distribuição de espécies de plantas, reciclam os nutrientes e permitem que outras espécies os utilizem.”
A Rewilding Portugal monitora de perto a fauna e a flora e já está notando os efeitos da soltura de cavalos e tauros na região.
“Primeiro, começamos a ver muitos coelhos e perdizes nas áreas que eram pastoreadas”, diz Prata, já que herbívoros menores podem encontrar proteção contra predadores em rebanhos de cavalos e tauros.
“Depois, notamos mudanças na composição das espécies vegetais.”
À medida que pastam e pisoteiam o solo, grandes herbívoros redistribuem sementes e nutrientes, abrindo espaço para o crescimento de outras plantas.
As áreas de pastagem têm mais espécies de flores, atraem mais polinizadores e predadores. As aves podem se alimentar dos insetos que o gado atrai e usar seus pelos para construir ninhos, como já demonstrado em outros estudos.
Dados coletados pela Rewilding Portugal em parceria com a Universidade de Aveiro, em Portugal, revelaram um aumento nas populações de corços na região. A agente de conservação Sara Aliácar afirma que o aumento das populações de cervos e javalis significa que há mais presas selvagens para sustentar os lobos-ibéricos na região.
Estudos demonstraram que o pastoreio natural por grandes herbívoros pode ajudar a proteger e restaurar mosaicos de vegetação com altos níveis de biodiversidade e aumentar o sequestro de carbono.
Os herbívoros também podem ter um papel importante na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e na redução do risco de incêndios.
Resiliência climática
Com o aumento das temperaturas, a região do Mediterrâneo está sofrendo épocas de incêndios mais longas, mais comuns e cada vez mais imprevisíveis, ultrapassando a capacidade de recuperação dos ecossistemas.
O abandono rural, a invasão de mato e as densas plantações de pinheiros também tornaram o vale do Côa particularmente vulnerável a incêndios de grande escala.
“Os herbívoros ajudam a remover a biomassa, que, em vez de se acumular, está sendo devolvida ao solo”, afirma Miguel Bastos Araújo, pesquisador especializado no estudo dos efeitos das mudanças climáticas na biodiversidade na Universidade de Évora, Portugal, e membro da direção da Rewilding Portugal.
Ao consumirem capim alto e arbustos, os herbívoros ajudam a transferir o carbono da vegetação acima do solo para o solo, aumentando o armazenamento de carbono e tornando os ecossistemas mais resilientes ao fogo.
“O Côa é um corredor natural que facilita a adaptação das espécies, permite a migração das espécies e serve como uma autoestrada da biodiversidade”, afirma Bastos Araújo.
Mas o objetivo da Rewilding Portugal de estabelecer um corredor de 1.200 km² ainda está muito distante. Embora tenha sido criado um parque arqueológico no norte do Côa para proteger as gravuras paleolíticas e exista uma reserva natural no sul da serra da Malcata, a grande maioria das terras é propriedade privada.
“O que temos neste momento é uma paisagem altamente fragmentada, com muitas cercas e propriedades privadas, o que constitui um obstáculo para os grandes herbívoros”, diz Prata.
“Trouxemos de volta os animais retratados nas gravuras, mas ainda não conseguimos trazer de volta a migração para o Côa. As grandes manadas migratórias que se deslocavam pela paisagem continuam ausentes”, afirma. A organização sem fins lucrativos está comprando terrenos ao longo do Côa para criar caminhos ecológicos.
A Rewilding Portugal também libertou duas manadas de 20 cavalos Sorraia, uma raça local ameaçada de extinção, no Vale do Côa, em Portugal
Diana Takacsova
Para reverter a degradação dos ecossistemas, a estratégia de biodiversidade da União Europeia para 2030 exige que os Estados-membros protejam legalmente pelo menos 30% das terras europeias e protejam rigorosamente pelo menos 10% do território até o final desta década.
Alcançar essas metas será um desafio em Portugal, onde apenas 3% das terras florestais são propriedade de entidades públicas.
“Não temos áreas de conservação rigorosa, apenas cerca de 0,02% do território [em Portugal] é de proteção rigorosa”, afirma Bastos Araújo.
A missão da Rewilding de adquirir terras para a conservação da natureza pode ajudar a aumentar a porcentagem de terras protegidas do país, mas Bastos Araújo afirma que mais precisa ser feito em nível nacional para atingir as metas de conservação da UE – como políticas estaduais para adquirir terras a serem protegidas, incentivos fiscais para a conservação e garantir que, uma vez que uma parcela de terra seja classificada como protegida, seu status não possa mudar, mesmo que seja vendida a novos proprietários.
Até o momento, a Rewilding Portugal afirma que a organização não enfrentou oposição significativa das comunidades locais, mas a perspectiva de aumento do número de lobos é particularmente controversa.
Para lidar com as preocupações com potenciais ataques de lobos, a organização sem fins lucrativos forneceu cães de guarda e cercas à prova de lobos aos agricultores locais para proteger o gado. O sindicato dos agricultores locais não respondeu ao pedido de comentário da BBC Future Planet.
“Nosso foco é levar os benefícios da natureza às pessoas”, diz Prata. A renaturalização, afirma ela, pode se tornar uma oportunidade para uma economia rural regenerada, baseada no turismo de natureza e em produtos locais, e é um modelo que pode ser reproduzido em outras regiões despovoadas da Europa.
Em Portugal, uma rede de empresas baseadas na natureza foi criada no Vale do Côa para promover produtos locais e difundir a região como um destino de turismo sustentável.
Para Prata, o processo oferece esperança para a restauração ecológica, mas exige paciência. “Buscamos a transformação da paisagem a longo prazo para um estado mais selvagem, e isso não pode ser feito em apenas alguns anos”, afirma.
“É um compromisso de proporcionar uma paisagem mais selvagem para a próxima geração.”
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