Intervenções culturais em escadões mantêm viva a memória do Jardim Ibirapuera

“Que o tempo passe, mas nada tanto se desgaste.” A frase, escrita em um dos degraus da mais recente intervenção cultural do Jardim Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, sintetiza o espírito do projeto Escadão Galeria. A mensagem marcada na rua Aldeia de Joanes foi assinada por Eduardo Duetho, 32 , ou simplesmente Du, como é conhecido na região.

Duetho é um dos produtores da iniciativa que transforma os escadões do bairro, localizado no distrito do Jardim São Luís, em galerias a céu aberto e exalta a memória de pessoas fundamentais para o crescimento da região por meio da cultura.

Eduardo Duetho, o Du, um dos coordenadores responsáveis pelo Escadão Galeria @Daniel Santana/Agência Mural

Com um grande número de escadões e vielas que conectam o bairro e facilitam o dia a dia dos moradores, a proposta surgiu com o intuito de tornar esses espaços vivos, valorizando a identidade local com a participação da própria comunidade.

As ações também fazem parte do projeto Observatório Ibira30, que, por meio de pesquisas de percepção de impacto social baseadas nas intervenções culturais nas comunidades da região, levanta pontos sobre as características da população, qualidade de vida e como essas ações tornam os lugares mais atrativos sob o olhar dos próprios moradores.

“A gente quer qualificar e também criar um registro histórico de algumas figuras importantes, que ajudaram a construir o bairro, tanto na educação quanto na cultura”, diz Duetho.

LEIA TAMBÉM

O morador que transformou um escadão na zona sul em ponto turístico

Memórias em degraus

Três escadões do bairro já foram revitalizados. O primeiro, localizado na altura do número 629 da rua Salgueiro do Campo, foi redecorado em maio de 2023 e homenageia Escurinho do Acordeon, morador célebre da região, presença garantida em inúmeros eventos comunitários, também conhecido como “o Luiz Gonzaga de Santo Amaro”.

Já o segundo, também na rua Salgueiro do Campo, próximo ao número 400, teve sua arquitetura transformada em outubro do mesmo ano, homenageando a Tia Maria, moradora do Jardim Ibirapuera. Ela fundou a “Escolinha da Tia Maria” com outras onze educadoras, em prol da alfabetização de crianças.

Escadão em homenagem a Tia Maria, figura célebre do Jardim Ibirapuera @Daniel Santana/Agência Mural

A escolinha foi o primeiro local de ensino comunitário do território e se manteve ativa por quase 30 anos, levando educação a diversas gerações. Também funcionava como rede de apoio às mães, que encontravam ali acolhimento e carinho para seus filhos.

A auxiliar administrativa Aline Reis, 32, neta da Tia Maria, é uma das pessoas que se emocionam ao passar pelo espaço. Ela sobe e desce os degraus diariamente e relembra, com carinho, a história de sua avó e de outras educadoras da região.

Aline Reis, 32, neta da Tia Maria, grande homenageada do segundo Escadão @Daniel Santana/Agência Mural

“Ela conseguiu alcançar tanta gente por meio da educação. No dia da inauguração, veio muita gente falar comigo, ex-alunos. Foi muito bonito ver professoras vindo de outros estados para participar desse dia.”

Aline se emociona ao ouvir os depoimentos de quem esteve em sala de aula com sua avó e vê na intervenção uma forma de reconhecimento póstumo. Tia Maria faleceu durante a pandemia da Covid-19, sem a despedida que merecia. Hoje, o escadão carrega seu nome e história.

“O Escadão mostra a pessoa grande que ela foi. Ver as pessoas comentarem ‘olha, eu me vi na foto, Aline’. Para mim, meus tios, filhos, netos e bisnetos — como o meu filho — é muito gratificante.”






A terceira e mais recente intervenção foi feita em abril, no escadão entre as ruas Aldeia de Joanes (número 222) e Antônia da Cruz Messias. Por meio de fotos, capas de livros e frases, as artes homenageiam figuras importantes da literatura brasileira e movimentos literários periféricos.

É possível observar trechos de obras de Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro e Sérgio Vaz. Poetas e poetisas da comunidade também têm espaço garantido na intervenção. Jenyffer Nascimento, Daniel Fagundes, Dinha Maria Nilda, Dona Edite, entre outros, estão presentes nos detalhes da obra, assim como diversos saraus que atuam na região — como o Sarau do Binho, Verso e Versos e o Sarau Preto no Branco.

Todos os escadões foram restaurados e decorados por crianças, jovens e adultos moradores do Ibira, com apoio de movimentos da região como a Fundação Julita e o Projeto Viela, que colaboraram com a confecção das intervenções.

Zelia Arruda, 84, uma das participantes da Oficina de Mosaicos, que foram utilizados na decoração dos espaços @Daniel Santana/Agência Mural

Zelia Arruda, que, aos 84 anos — ou, como ela mesma diz, “uma jovem de 84 anos” — participou das oficinas de mosaico que decoram os escadões. Para ela, o envolvimento da comunidade no processo é essencial.

“Minhas vizinhas estavam aqui também, colaborando muito. A gente vai chamando uma, depois vem outra, e assim mais pessoas chegam para ajudar. É uma coisa maravilhosa que a gente faz pelo bairro.”

Ela afirma ser um grande prazer fazer parte da ação, pois, além de colaborar com algo que leva cultura à região, também contribui para embelezar os espaços.

Parte da equipe do Bloco do Beco responsável pela organização e confecção dos escadões @Daniel Santana/Agência Mural

Um bairro que se vê

Até 2030, o plano do Escadão Galeria é entregar ainda mais espaços revitalizados para a população, resgatando a memória do bairro e permitindo que os moradores enxerguem sua própria história ali representada.

Luiz Cláudio, 51, um dos fundadores do Bloco do Beco e coordenadores do projeto Escadão Galeria @Daniel Santana/Agência Mural

Luiz Cláudio de Souza, 51, um dos fundadores do Bloco do Beco e coordenador do projeto, destaca a importância de proporcionar cultura aos moradores, por meio da memória afetiva que as obras despertam.

Segundo ele, o sonho de tornar o Jardim Ibirapuera a comunidade periférica mais colorida e viva de São Paulo já é realidade, graças ao engajamento popular.

‘Quem mora aqui faz os mosaicos, as artes. Depois, quando vêem, sentem o prazer de dizer ‘olha, eu participei disso!’ Dá um sentimento de pertencimento. E esse sentimento ajuda a cuidar dos espaços depois’

Luiz Cláudio de Souza

Manter viva a história, apresentando Escurinho, Tia Maria, a literatura periférica e tantas outras trajetórias, faz com que a comunidade se reconheça ao circular por esses espaços diariamente.

“É um resgate, um embelezamento, uma forma de fortalecer a rede. É um fio que começou lá atrás e que não parou de dar frutos. É continuidade”, conclui Duetho.

LEIA TAMBÉM

Pai e filho transformam viela da zona sul em parque com picadeiro 

Em breve, outros pontos do bairro deverão ser revitalizados pelo projeto. Dar vida a espaços normalmente pouco notados e de rápida passagem tem como intuito transformar cada canto, beco e viela em lugar de memória e afeto — e assim consolidar o projeto de “Bairro Educador”, como reforça Luiz.

“A formação política é pelo afeto. É pelo afeto que mostramos que, se nos juntarmos, como no projeto do escadão, seremos mais felizes e teremos um bairro melhor.”

Escadão com referências à Literatura Periférica na rua Aldeia de Joanes @Daniel Santana/Agência Mural

Escadão Galeria

Escadão – Escurinho do Acordeon : Rua Salgueiro do Campo, 629, Jd. Ibirapuera – 05814-210 (Próximo ao Bloco do Beco)

Escadão – Tia Maria : Rua Salgueiro do Campo, 400, Jd. Ibirapuera – 05814-210 (Próximo à Academia 300 Fit)

Escadão – Literatura Brasileira e Periférica : Rua Aldeia de Joanes, 229, Jd. Ibirapuera – 05814-110 (Próximo ao CDC Ibirapuera)

Agência Mural

O post Intervenções culturais em escadões mantêm viva a memória do Jardim Ibirapuera apareceu primeiro em Agência Mural.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.