Marieta Severo fala sobre novo filme, 60 anos de carreira e o orgulho de dona Nenê


Atriz reflete sobre reflexos de sua vida própria vida em ‘Câncer com ascendente em virgem’, no qual interpreta a mãe de uma mulher com câncer: ‘foi para regiões muito dolorosas e difíceis’. No ano em que completa 60 anos de carreira, uma das maiores atrizes do país quer descanso. O que não quer dizer que Marieta Severo tenha se afastado completamente do trabalho. Para estrelar a comédia “Câncer com ascendente em virgem”, em cartaz nos cinemas brasileiros, ela usou da arte para lidar com experiências pessoais difíceis.
No filme, a atriz interpreta uma mulher que tenta ajudar a filha (Suzana Pires), recém diagnosticada com câncer de mama — um reflexo direto do que a própria Severo passou em 2014 com sua filha, Silvia Buarque.
Tempos depois, ela também teve de passar por tratamento contra um câncer no endométrio.
“Eu inclusive aceitei imediatamente, porque para mim isso é meio como uma missão mesmo. Eu pensei: eu tenho uma história. Eu tenho um, como se diz, lugar de fala disso, eu sei o que é que essa mãe está passando. E eu sei o que é receber uma notícia dessa. Enfim, eu já estive, infelizmente, nesse território aí”, diz a atriz em entrevista ao g1.
“Foi para regiões muito dolorosas e difíceis, né?”
Na conversa, ela falou sobre a produção baseada na experiência da produtora Clélia Bessa, o poder “curativo” da arte, a situação do cinema e do teatro brasileiros, o orgulho dos anos em “A grande família” e o tempo de descanso dedicado à família dos últimos anos — em especial desde a morte do marido, o diretor Aderbal Freire Filho, em 2023.
Assista ao trailer de ‘Câncer com ascendente em virgem’
Leia a entrevista abaixo, editada para clareza:
G1 – Como foi para você fazer essa personagem que dá um toque de leveza a uma história que poderia ser bem pesada?
Marieta Severo – Eu acho que partiu já da (produtora) Clélia (Bessa), né? Parte do blog dela, parte da postura que ela teve, a maneira que ela teve de enfrentar uma coisa tão difícil que é um câncer de mama, com a retirada de um seio, com tudo aquilo.
A maneira que ela teve de enfrentar isso, de colocar nesse blog, de fazer esse blog para se comunicar com o máximo de mulheres que estivessem na mesma situação, para tentar passar a experiência dela adiante de uma maneira construtiva, produtiva.
O filme parte disso. Isso é a alma do filme, a essência.
Eu acho que aí, não só a Susana – enfim, a turma do roteiro como, a direção da Rosane (Svartman) – tiveram a capacidade de colocar essa alma no próprio filme.
Então, o filme trata de um assunto que é meio aterrorizante, porque, quando a gente ouve essa palavra, ela vem como uma condenação. O filme te traz uma mensagem de que não, não é uma condenação.
Você passa por isso. A ciência já tem meios de ajudar a enfrentar isso, de te colocar numa situação de cura. E isso tudo é feito com a realidade do que está ali tá retratado, mas com humor, com leveza, com positividade – de uma forma construtiva para quem estiver vendo o filme, né?
Como eu já tenho a minha família – as minhas adolescentes e até as minhas adultas já foram ver, e eu vi a maneira como o filme toca, emociona, mas com essa pegada mais leve.
Você tem razão, (isso acontece) muito através do meu personagem. Eu fiquei com essa missão adorável no filme, que é essa mãe meio maluca, mística.
G1 – Em algumas entrevistas, você já falou que tem esse lado positivo, um lado otimista, mas que dá a entender que não tem tanto esse lado místico. Você não não vê a vida dessa forma tão mística?
Marieta Severo – Vamos dizer que eu não me ocupe desse lado. A minha personagem é completamente eclética. Ela acredita em tudo, né? E o divertido dela é isso. Porque ela leva o Buda, ela leva o santo, ela leva o candomblé. Ela leva tudo. Ela acredita em tudo e leva tudo.
Eu não tenho um exercício de fé. Eu fui batizada e frequentei – fui criada dentro da Igreja Presbiteriana até os 13 anos de idade. Fui de escola metodista, o Bennett.
Então, eu tenho uma formação mística. Só que aí, essa parte toda dogmática das religiões – eu me afastei muito da religião por causa disso.
Sei lá, com 13, 14 anos, no domingo as minhas amigas católicas do meu prédio iam todas para a praia e eu não podia ir, porque era o dia do Senhor.
Essa parte dogmática que é inventada pelo ser humano, né? Porque a gente é que dá, a gente é que deu forma a cada religião. E essa formatação é que não me convence, digamos assim.
Agora, essa sensação do mistério, de que tem alguma coisa aí, de que terá alguma coisa, mas que a gente não sabe, é que me dá até curiosidade. Mas nem tanto assim para eu querer me relacionar com ela, não. Então, a minha relação com a coisa mística é essa.
E eu sempre digo que a religião que mais me atrai é o candomblé. Pela liberdade, pela falta de preconceito, por não ter esse dogmatismo, por lidar com as forças da natureza.
Mas eu eu eu não consigo, sabe, o exercício da religião. E o meu sonho em relação à religião é termos realmente um estado laico. É isso.
G1 – Você também já teve uma experiência pessoal com o câncer, pessoalmente e nessa posição da mãe que vê uma filha com câncer. Imagino que tenha influenciado a sua escolha de participar do projeto. Como foi lidar com esses momentos durante as filmagens em que você conseguia se ver ali?
Marieta Severo – Foi para regiões muito dolorosas e difíceis, né?
Eu inclusive aceitei imediatamente, porque para mim isso é meio como uma missão mesmo. Eu pensei: eu tenho uma história. Eu tenho um, como se diz, lugar de fala disso, eu sei o que é que essa mãe está passando. E eu sei o que é receber uma notícia dessa. Enfim, eu já estive, infelizmente, nesse território aí.
Agora, eu tenho muita confiança, muita fé, no poder da arte. A arte é a coisa mais ligada ao sagrado que existe. Se há uma coisa que me aproxime do mistério é a arte, a capacidade que o ser humano tem de produzir arte, a necessidade que o ser humano tem da arte.
A gente precisa, a gente bebe. Tanto que eu sou apaixonada por artesanato popular, né? Porque eu acho lindo essa necessidade que o ser humano tem de botar beleza, de botar arte na sua vida.
A partir disso, eu sabia que, ao estar nesse lugar, a arte também ia me ajudar.
Eu tenho uma cena no filme que foi a mais dolorosa, mais difícil de fazer, que é quando a mãe diz para filha: “eu queria estar no teu lugar, eu queria que esse seio fosse o meu” e tal.
Então, isso tudo para mim teve também um poder, vamos dizer assim, “curativo” entre aspas, mas teve.
Eu repassei por esses lugares que eu tinha vivido, e que ainda bem que estamos fora deles.
A minha vida é isso, é acreditar nesse poder sublime, maravilhoso, misterioso, amplo, fundamental para o ser humano, que é o fazer artístico.
Marieta Severo, Suzana Pires e Nathália Costa em cena de ‘Câncer com ascendente em virgem’
Mariana Vianna/Divulgação
G1 – Outra coisa que você tem falado muito também é como você sofria, e pelo jeito ainda sofre, com uma certa falta de confiança na sua habilidade, na sua destreza. O que hoje chamam de síndrome de impostor. Isso isso te ajuda a dar conselhos e a guiar novas gerações de atrizes, como por exemplo, a Nathália Costa, que interpreta sua neta no filme?
Marieta Severo – Não, não, não. Eu não falaria conselho, não. Eu não gosto muito do negócio de conselho, não.
Conselho parece uma coisa que vem de fora, de cima, de um lugar assim onde eu nunca quero estar, nem nunca me coloco, entendeu? Mas a gente também está numa sociedade muito de “winners”, né? Vencedores. Como que você tem que estar. Você ser o máximo. Você se sentir o máximo.
Eu, com os meus 78 anos, acho melhor falar e tentar tocar uma pessoa que está começando e tal falando de como eu penei, como foi difícil, como foi custoso, como eu tive que trabalhar o meu interior, as minhas dúvidas, as minhas desconfianças em relação a mim mesma, eu não ter nunca certeza do meu talento.
Eu falo que eu sempre tive muita certeza da minha vocação. Eu tenho uma vocação inacreditável para o que eu faço. Isso tenho mesmo. Eu sou caxias, pé de boi. O horário, o trabalho, eu cumpro isso tudo com muita tranquilidade, com muito prazer, sempre foi assim desde jovem.
Mas cada personagem, cada momento da minha carreira, foi também de muita angústia, de muita insegurança, de muito “será que eu consigo? Não vou conseguir”. De muita dúvida em relação ao meu potencial, ao que eu podia fazer.
Eu acho mais útil, já que eu tenho esse compromisso com essa utilidade pública, quero que as pessoas vejam em mim ou peguem de mim alguma coisa que seja bacana para elas.
É melhor eu tentar tocar o jovem para ele saber que você não tem que ser assim. Calma, calma. Fica atenta. É assim mesmo, a gente pena, é difícil, a gente tem muita insegurança, a gente caminha num terreno (que tem) muito lodaçal, sabe? É difícil mesmo.
G1 – E, com 60 anos de carreira, óbvio que é importante a sua visão do audiovisual brasileiro. Como você vê a situação atual, em especial depois do primeiro Oscar do Brasil, com “Ainda estou aqui”, que parece ter atraído de volta o público ao cinema nacional?
Marieta Severo – Olha, eu parto de uma coisa que é o seguinte: nós temos muito a dizer. A nossa cultura é comoventemente rica, diversa, incrível. Nós somos um país culturalmente incrível, dos melhores do mundo.
Nós temos mais diversidade nesse continente. Você vê o que que é a cultura do Nordeste, a cultura do Centro, a cultura do Sul, a cultura do Norte. Meu Deus do céu, a gente tem muito a dizer.
E nós temos, nós conseguimos desenvolver com a excelência que é a nossa dramaturgia do audiovisual televisiva. Nós conseguimos desenvolver realmente uma capacidade de contar histórias maravilhosa, ímpar. Agora, o que que a gente tem que fazer?
Agora estamos nesse momento com esses streaming todos, esses poderes em potencial, vamos dizer assim, de fora chegando aqui. Que ótimo. Eles sabem onde eles estão chegando. Eles sabem o que nós temos a oferecer. Nós temos um know-how impressionante, maravilhoso.
Agora, é claro que isso tem que ser regulamentado. É regulamentado no mundo inteiro. Eu acho que nós estamos nesse momento e eu sei que o Ministério da Cultura está trabalhando nisso.
Nós precisamos de leis, como existe no mundo, como existe na França, eles são taxados em 20%. Aqui não acontecerá isso, mas uma taxação significativa em prol do nosso cinema, disso tudo que nós temos para contar, para dizer, para nos estabelecer.
E, ao lado disso, nós temos uma indústria que tem que ser fortalecida. Esses acessos todos, esses mecanismos todos, eles têm que ser muitas vezes retrabalhados.
A gente tem sempre que falar nisso, nós tivemos quatro anos de destruição da nossa cultura, do nosso cinema, principalmente, de toda capacidade de nós dizermos o que a gente tinha para dizer. Eles tinham muito medo do que a gente tinha para dizer.
Depois de dois anos, já reconstruímos. Agora, eu acho que a gente tem que pensar muito no fortalecimento dessa indústria e nas oportunidades.
Eu acho que a gente tem que formar novos polos, sabe? Novos polos pelo Brasil afora. E fortalecer onde a indústria já acontece de uma forma mais potente.
Então, eu acho que essas duas coisas têm que caminhar paralelamente. Sem uma ocupar o lugar da outra, porque as duas são fundamentais, né? A diversidade, outros polos, tal, e o fortalecimento dos polos que já existem.
G1 – E o quanto mudou essa produção cultural no Brasil nos últimos 60 anos?
Marieta Severo – Eu vivi a minha juventude toda na ditadura. Então, a gente lidava não só com uma censura, com um achatamento muito grande assim das nossas ideias, do nosso fazer.
Você produziu uma peça, de repente na última hora eles embargavam, como aconteceu com Calabar, por exemplo, né? Asfixiaram a produção. A gente lidou com isso tudo.
Isso tudo também, eu acho, criou um fortalecimento muito grande das nossas ideias, dos nossos ideais, da nossa batalha. Da sensação do coletivo. Eu sou formada por grupos. Pelo Oficina, pelo Arena, por grupos, onde o que interessava era estar coletivamente fazendo as coisas.
Agora, anos se passaram e não é que isso não exista de outras maneiras, mas são muitas outras maneiras – até também condicionadas por uma dificuldade de produção muito grande, sabe?
Eu faço a curadoria lá do Poeira, as pessoas basicamente mandam projetos de monólogos. São monólogos, monólogos, monólogos, monólogos, monólogos.
Também por dificuldade, muito por dificuldade financeira, não é que as pessoas não continuem tendo seus ideais de coletivos. É lindo você ver num palco, sei lá, hoje em dia quatro, cinco, seis pessoas.
Mas tá cada vez mais difícil a parte do atendimento à produção, porque houve um afastamento muito grande do preço do ingresso e do custo da produção.
Enfim, é uma questão toda econômica aí e, ufa, a economia cansa, né? Ô assunto chato. Desculpe, economistas. Eu até acompanho, acompanho vocês com todas as questões e tal.
Então, eu confesso que eu fico um pouco saudosa disso de uau, oito pessoas em cena. Que lindo, que bonito. Mas são os momentos. Esse é um momento rico também – de outra forma, né?
Marieta Severo em cena de ‘Laços de família’
Divulgação
G1 – Agora, indo um pouco para a sua carreira na TV. Você fez muitas vilãs em novelas ao longo dos anos. Por que que isso aconteceu? Foi algo que você buscava? Você acha que você ficou meio marcada por esse lado de vilão ou ou te interessava esse tipo de personagem?
Marieta Severo – Não, me interesso por personagens diversos, diferentes. Eu acabei de fazer uma coisa, a próxima tem que ser o oposto dessa, completamente diferente, que me solicite de outro jeito, que me desafie de outro jeito.
Eu nunca, vamos dizer assim, chovo no molhado. Isso não existe. Já aconteceu algumas vezes na minha vida de vir um personagem que eu falei: “gente, mas eu acabei de fazer uma parecidíssima com isso, não vou fazer outra”. Isso é uma regra.
Mas se eu te falar assim, o que eu acho que realmente me marcou e eu sinto isso andando por aí é dona Nenê.
G1 – Ah, claro. Eu ia falar sobre isso em seguida.
Marieta Severo – Eu não acho que eu vou ficar marcada como as minhas vilãs, que elas não eram nem vilãs suficientes, né? Então, eu acho que a minha marca para o público mesmo é, dona Nenê.
Eu vejo isso andando, mas agora que fica passando, passando, passando. Às vezes eu passo ali, ai, só que me aperta o coração, aí eu não consigo ficar vendo. Mas é isso, foram 14 anos de dona Nenê, dessa mãezona, né, na época a mãe do Brasil e tarará.
Acho ótimo, gosto do personagem, adoro a série. Acho que realmente aquilo ali é de uma qualidade enorme, né. Não só dos atores, tudo, mas basicamente de uma dramaturgia riquíssima, ótima.
Eu tenho o maior orgulho de ficar conhecida como a dona Nenê.
Marco Nanini e Marieta Severo em cena de ‘A grande família’
Sergio Zalis/Globo
G1 – Sem dúvida, essa era a minha próxima pergunta. Porque eu lembro muito da Alma, em “Laços de família”. Aquilo me marcou muito. E você já tinha feito algumas vilãs. Em seguida, ficou anos como a “mãe do Brasil” em “A grande família”. Depois já emendou duas vilãs em novelas.
Marieta Severo – É isso. Depois de 14 anos sendo boazinha, depois de 14 anos fazendo dona Nenê, tinha que vir pelo menos duas vilãs, entendeu? Tinha que ser, ainda bem que eu tive essa sorte. Ainda bem que eu fui chamada, né?
Eu acho “Verdades Secretas” maravilhoso, maravilhoso, é um maior orgulho de ter feito. Mas enfim, é isso, essa alternância que vai sendo gostosa, que desafia, que é o sabor maior.
G1 – E faz parte também essa própria conexão com o público? Essa reação de alguém que cresceu com Dona Nenê e aí de repente te vê ali mais vilanesca e sensual em “Verdades Secretas”.
Marieta Severo – É, claro, claro. Foi um foi um espanto. Acho até que descobriram que eu era atriz ali (risos). A gente falava: “Nossa, se espantaram por que?”.
Achavam que eu era na vida real meio dona Nenê, né. Mãe, três filhos, casada, não sei quê, tarará. Aí,depois: “nossa, mãe, ela é atriz, ela sabe fazer outra coisa, olha só”. Teve um pouco esse sabor também.
G1 – E, agora, o que te falta? Tem alguém com quem você ainda gostaria de trabalhar? O que você quer fazer agora?
Marieta Severo – Você quer dizer agora? Neste momento?
G1 – Sim.
Marieta Severo – Nesse momento atual, agora, nada. Eu estou quieta. Eu estou muito bem quieta.
Eu estou muito disponível para a minha família, para os meus netos, para o meu momento. Eu passei três anos muito difíceis. Então, eu estou me concedendo isso. Vou viajar agora com a minha filha mais velha, com a Silvinha, estou animadíssima. Estou num momento de me recompor.
Eu fiz cinema. Fiz esse filme. Eu fiz o “Domingo à noite”, num período dificílimo também, que foi mais uma vez ligado a esse lugar da arte, que vai me ajudar. O Aderbal já estava mal. Enfim, isso tudo.
Agora eu me permiti ficar quieta um pouco e estou achando bom, estou vendo muita coisa, estou assimilando muita coisa. Mas tenho projeto de teatro, tenho projeto de quatro filmes, eu estou com os projetos aí.
Então, provavelmente, no segundo semestre, já devo começar a sair desse lugarzinho gostosinho que eu tô.
Também é bom eu me permitir esse lugar. É um grande ganho, porque na a vida inteira eu fazer teatro, cinema, televisão, três filhas, um marido, não sei quê, o escritório. Tudo muito bem, quer dizer, com muita confiança e achando que a vida era muito boa assim. Não reclamo nadinha, nadinha.
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