Terremoto em Mianmar, país sob repressão militar, tem dimensão também espiritual

Potencial destruidor é agravado por uma guerra civil que fragilizou o país e dificulta a entrega de ajuda internacional. População, que perdeu importantes templos, vê punição espiritual coletiva.O terremoto que atingiu Mianmar na sexta-feira (28/3) afetou duramente o país do Sudeste Asiático. Há mais de 2 mil mortos confirmados, mas o número pode subir à medida que orças de resgate chegam a regiões remotas.

Imagens nas redes sociais de Mandalai, cidade de 1,6 milhão de habitantes próxima ao epicentro do terremoto, mostram ruas onde metade das casas desabou ou foi danificada. E antes mesmo da tragédia as Nações Unidas já contabilizavam 20 milhões de habitantes em situação precária, dependentes de ajuda humanitária.

As conexões telefônicas e de energia no centro do país só funcionam esporadicamente, quando funcionam. A DW conseguiu fazer contato com pessoas em Yangon, na costa do país, que aguardavam desesperadamente por notícias de familiares e amigos em Mandalai.

Desespero e desamparo

Tun Myint* afirma que seus conhecidos sobreviveram à tragédia, mas agora estão na rua – por medo dos tremores subsequentes e também de que suas casas possam vir a desabar.

“Eles dizem que ouviram gritos de socorro de pessoas presas [sob os escombros]. Mas não podem fazer muita coisa. Falta maquinário pesado. E se em Mandalai já está assim, como será que está em outras regiões mais isoladas?”

O terremoto de magnitude 7,7 atingiu um país já fragilizado que, desde o golpe militar de 2021, entrou em uma fase especialmente intensa da guerra civil do país, que era conhecido como Birmânia até 1989. O epicentro dos tremores foi registrado próximo à cidade de Sagaing, não muito longe de Mandalai, uma das regiões mais violentamente disputadas no conflito.

Mesmo antes do terremoto, a infraestrutura já havia sido severamente danificada pelos bombardeios da junta militar e pelos combates com diferentes facções. Uma em cada quatro dos cerca de 53 milhões de habitantes de Mianmar já vivia na pobreza desde a pandemia de covid-19 e o início do conflito, segundo as Nações Unidas, e 3,6 milhões foram deslocados por causa da guerra.

O terremoto atingiu, portanto, um país já marcado pela escassez e precariedade. Além de casas, vieram abaixo também prédios universitários e, sobretudo, hospitais, estações de bombeiros e centros de saúde. Muitas pontes e estradas estão intransitáveis, e a operação dos aeroportos de Mandalay e da nova capital, Naipidau, está comprometida.

As regiões mais afetadas pelos tremores são controladas por diversos grupos envolvidos na guerra civil, o que dificulta ainda mais os esforços de ajuda.

Ajuda internacional

Tun Myint* diz não acreditar que as partes do conflito cooperarão diante da catástrofe. “Todos os lados tentarão tirar proveito da situação”, afirma.

A junta militar pediu ajuda à comunidade internacional. Rússia, China, Índia, Singapura, Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, dentre outros atores, prometeram assistência. Os primeiros suprimentos e equipes de resgate chegaram no domingo ao país.

O governo no exílio de Mianmar anunciou uma trégua unilateral de 14 dias para auxiliar a população. O grupo é formado por parlamentares eleitos nas eleições de 2020 e, desde o golpe de 2021, organiza a luta armada contra os militares.

Swe Maung*, um político de oposição que vem de Mandalay, mas fugiu por causa da guerra para a cidade tailandesa de Chiang Mai, acha que a tragédia vai favorecer a junta militar liderada pelo general Min Aung Hlaing em detrimento da oposição exilada, que “não dispõe da logística necessária para ajudar”.

“Sinceramente, agora para mim tanto faz quem vai ganhar a guerra”, diz Tun Myint. “As pessoas precisam de qualquer ajuda que puderem receber.”

Catástrofe também tem dimensão espiritual

Além das perdas materiais, Mianmar, país de maioria budista, também foi atingida espiritualmente. Muitos templos importantes foram gravemente danificados, como o Mahamuni Buddha em Mandalay, segundo mais importante do país, atrás somente de Shwedagon, em Yangon.

“O terremoto abalou profundamente a identidade dos Bamar”, afirma Tun Myint, referindo-se à maioria étnica do país. Ele explica que, na crença deles, tudo o que “uma pessoa conquista ou sofre em sua vida é consequência do que fez numa vida passada”. “Cada felicidade e cada sofrimento são justificados assim.”

E é por isso que a tragédia agora é interpretada como produto do carma coletivo do país. O terremoto é, portanto, uma catástrofe também espiritual.

Elefantes em troca de caças de guerra

A espiritualidade também é instrumentalizada na guerra civil para fins políticos. Isso fica evidente no comportamento do primeiro-ministro e líder golpista Min Aung Hlaing, um autoproclamado defensor do budismo que, além de reprimir dissidentes, também mandou erigir em Naipidau a maior escultura de um Buda em mármore do mundo.

Em março, durante visita de Estado à Rússia, o chefe da junta militar mostrou ao presidente russo Vladimir Putin um livro raro datado de 1942 que menciona uma suposta profecia da época de Buda, segundo a qual um rei russo e um chefe de armas inaugurariam séculos depois uma era dourada do budismo.

Durante a visita, Min Aung Hlaing disse estar confiante de que Putin triunfará na Ucrânia, e presenteou-o com seis elefantes de Mianmar. O mimo foi retribuído com seis caças russos.

Paralelos históricos

Diferentemente do exilado Swe Maung, Nyein Win*, que vive em Yangon, diz ter certeza que o terremoto será ruim para os militares. Ela vê a tragédia como um sinal claro de que o governo está definhando.

Ela justifica a análise aludindo a um outro terremoto igualmente devastador, em 1930, quando o país ainda era uma colônia britânica. Naquela época, o topo da cobertura do templo Shwedagon desabou, o que foi interpretado como sinal de uma grave crise estatal.

No mesmo ano houve uma grande revolta contra o domínio britânico, e surgiu a “Dobama Asiayone” (“Nós, sociedade birmanesa”, em tradução livre), que liderou a luta política contra os colonizadores por décadas e teve um papel fundamental na independência do país.

Esse paralelo histórico é significativo porque muitas pessoas veem o atual regime militar como um poder colonial dentro do próprio país – que, assim como os britânicos, precisa ser expulso.

O teólogo alemão e especialista em Mianmar Hans-Bernd Zöllner também acha que essa dimensão espiritual pode ter um impacto considerável no futuro do país. “Afinal, a fé move montanhas. Mas o espiritual nunca é algo evidente.”

Para Zöllner, o ideal seria que “as facções inimigas em Mianmar se sentassem à mesa para buscar, no interesse da população, soluções para o impasse. Para isso, seria necessário que ambos os lados reconhecessem a responsabilidade que têm pelo infortúnio do país. Mas é pouco provável que isso aconteça.”

*Nomes alterados pela redação a pedido dos entrevistados, que temem ser alvo de represálias.

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