Conheça Ricardo Aparecido Dias, artista que luta pela preservação da memória e cultura de Osasco

Quando chegou a Osasco, na Grande São Paulo, em 1965, Ricardo Aparecido Dias, 78, não imaginava que, além de encontrar um grande amor, se tornaria um dos principais artistas e um dos responsáveis pela documentação e preservação da memória cultural da cidade, que completa 63 anos nesta quarta-feira (19).

No livro “Osasco jeito de ser – Arte e Cultura”, o ator, jornalista e professor, reúne memórias da cena cultural ao lado de outros dois nomes conhecidos na cena artística da cidade: Eduardo Rodrigues e Ruben Pignatari.

“A ideia surgiu da minha atividade como jornalista há trinta anos quando trabalhei na imprensa local e da urgência de registrar a memória da arte e da cultura”, conta.

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Por meio de artigos, reportagens, depoimentos e entrevistas com artistas, produtores e autoridades, o trio reuniu um material que apresenta a cena cultural de antigamente até os dias atuais. Foram três anos de trabalho até o lançamento, realizado em agosto do ano passado.

Projeto contemplado pela lei Paulo Gustavo, o livro está sendo distribuído gratuitamente em eventos pela cidade. As datas são informadas pelo autor nas redes sociais. Foram distribuídos 350 dos 500 exemplares disponíveis. “Se a procura continuar sendo boa como está, podemos tentar pleitear uma nova edição via edital da lei Paulo Gustavo ou quem sabe conseguir patrocinadores”, explica.

Cultura a ameaçada

No decorrer das mais de 390 páginas, o leitor é convidado a conhecer artistas locais e iniciativas que não existem mais como o Festa Popular da Música, Salão de Artes Plásticas e outras que persistem como o Homem-Grilo, super-herói dos quadrinhos defensor de Osasco City, criado pelo quadrinista Cadu Simões.

Tendo participado da efervescência dos movimentos culturais no final das décadas de 1960 e 1970 na cena artística da cidade, Ricardo observa com criticidade e preocupação o caminho que a área cultural está seguindo.

‘A cultura de Osasco está patinando. Temos visto vários espaços desativados. A biblioteca e o museu estão fechados há muito tempo. Parece que estamos retrocedendo a nível cultural’

Com o avanço da especulação imobiliária e a falta de iniciativas de estímulo para vivenciar o local, Ricardo teme que Osasco vire uma cidade-dormitório.

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Destaca a importância da manutenção e criação de mais espaços voltados ao incentivo de práticas culturais a fim de fortalecer o trabalho dos artistas locais, favorecer o surgimento de novos nomes e fazer com que as pessoas criem raízes na cidade por meio das experiências proporcionadas por ela.

“Temos muitos artistas bons. Antigamente, você [artista] desenvolvia um trabalho em Osasco e depois ganhava projeção em São Paulo e no Brasil inteiro. E é por meio do trabalho do artista local que é possível exercer um senso crítico em relação às coisas que são colocadas de cima para baixo”, reflete.

Ele cita como exemplo a construção de falsos heróis e o apagamento da participação de determinados grupos (negros, indígenas, mulheres) na construção da história local.

Ricardo e Mercedes conheceram-se em 1965 no grupo de jovens da igreja Imaculada Conceição @Ariane Costa Gomes/Agência Mural

A memória tem sido tema recorrente dos trabalhos do escritor que já lançou oito livros. Lançado em 2021, “Memória da Comunidade de Cultura Negra de Osasco” possui uma série de depoimentos e momentos históricos da cidade a partir da perspectiva e da participação da comunidade negra da região.

“Foi um desafio delimitar para fazer só de Osasco e inclui alguma coisa de Carapicuíba”, conta ele que planeja dar continuidade ao trabalho e escrever a ‘Memória da Comunidade de Cultura Negra da Região Oeste da Grande São Paulo’. “Já tenho em vista algumas pessoas interessadas em participar”, diz.

Livros escritos por Ricardo Aparecido Dias

  • Memória da Comunidade Negra de Osasco, 1986;
  • Balanço de Vida, poemas, 1988;
  • Jugo Suave, poemas 1996;
  • Vida Passada a limpo, 2012,
  • Memória do Servidor Público de Osasco, 2013,
  • Memória da Comunidade de Cultura Negra de Osasco 2019,
  • Sobre(a)vida poemas e crônicas 2022;
  • Osasco jeito de ser arte e cultura 2024.

Uma história de amor e arte

Aos 19 anos, Ricardo cantava nos shows promovidos no salão paroquial da Igreja Imaculada Conceição, localizada no Km 18, zona sul de Osasco. Foi lá que conheceu Mercedes de Souza, 81, moradora do bairro que frequentava a missa e também cantava nos shows.

“Assistia a missa e depois ia para a atividade cultural. Foi ali que tudo começou”, relembra Mercedes. “Na época tinha uma comunidade no Km 18 que fazia shows ao ar livre, eu cantava e todo mundo do bairro me conhecia. E como era muito fã da Angela Maria, cantava seu repertório”. Os dois não se separaram mais.

Em 1965, Ricardo, Mercedes e o grupo de jovens da igreja criaram o TIO (Teatro Independente de Osasco), onde tinham o apoio do pároco Rafael.

Elenco do espetáculo “Zumbi” dirigido por Mercedes de Souza em 1998 @Carlos Marx Alves

A primeira delas foi “Rede, Seca e Fome”, com texto de Ruben Pignatari e músicas de Dias, que abordava a luta do povo nordestino pela sobrevivência. O grupo participou da I Festa Popular da Música de Osasco, promovida em 1968 pela classe artística local, quando apresentaram “Fim de Reza”, parte da trilha sonora do espetáculo teatral, que conquistou o terceiro lugar.

Após uma série de apresentações, em 1969 o grupo teve a primeira experiência com a censura durante o período da Ditadura Militar (1964-1985). Em uma apresentação em Guaxupé, Minas Gerais, foram interrompidos por uma mulher da plateia que dizia que a abordagem da peça era injusta e que os nordestinos eram bem recebidos em São Paulo.

Dias depois, Ricardo e mais quatro integrantes da direção do grupo foram intimados a comparecer no quartel do exército, em Quitaúna. Descobriram que a mulher que havia feito a reclamação era esposa do então comandante do 4º Regimento da Infantaria.

“Ninguém imaginava que o Exército poderia estar de olho na gente. Acho que tivemos muita sorte porque na época sumiu muita gente”, conta Mercedes. O episódio é contado com mais detalhes no livro onde Ricardo recorda a ordem para que fizessem “peças mais leves e mais tranquilas”. A situação preocupou os integrantes e o grupo foi dissolvido.

Com o término das atividades do TIO, Ricardo e Ruben montaram um curso de teatro em 1971. Um ano depois, o projeto dá origem ao Núcleo Expressão, grupo formado com alunos do curso.

A primeira montagem foi “Um homem chamado Jesus”, que contava sobre a Paixão de Cristo e a sagrada família era interpretada por atores negros. Ricardo foi o protagonista. O espetáculo foi apresentado durante quatro dias ao ar livre na Praça Antônio Menck, centro de Osasco, e depois levado a outros bairros de Osasco e de cidades vizinhas como Barueri e Carapicuíba.

“Foi uma época maravilhosa e que marcou quem viu. Amamos muito essa cidade, pulsamos muito tempo com nosso projeto e tinha vários outros movimentos artísticos espalhados. As pessoas se mobilizavam, era algo muito bonito”, recorda Mercedes. Para o casal, o público abraçou e acolheu a proposta de ter um Cristo negro.

Ensaio da peça “Um homem chamado Jesus” que foi encenada nas ruas de Osasco em 1971 @Rômulo Fasanaro

A ideia de fazer teatro de rua foi a estratégia encontrada pelo grupo que, à época, tinha 40 integrantes, para atrair o público até a sala nobre do paço municipal onde as apresentações eram feitas. A cidade ainda não tinha um teatro.

Com o dinheiro arrecadado por meio dos ingressos e dos espetáculos que eram vendidos às escolas, eles conseguiram um espaço próprio. Sete anos depois, o grupo encerrou as atividades devido a dificuldades financeiras, mas Ricardo e Mercedes continuaram a trajetória atuando em teatros em São Paulo, filmes e novelas.

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Em 1988, Ricardo e Mercedes inauguram a Culturarte, escola de teatro, música, galeria de artes plásticas e auditório. Permaneceram no endereço da rua Pedro Fioretti até 1991 apresentando diversos espetáculos sob a direção de Mercedes, que começou a dar aulas de teatro.

O projeto teve uma pausa de quatro anos e foi retomado quando passou a ser executado em um salão da garagem da casa dos artistas onde permaneceu até o ano de 2003.

Mercedes deu continuidade a sua carreira como professora de teatro e Ricardo atuou no funcionalismo público e na carreira acadêmica. Atualmente aposentados, o casal é responsável pelo cuidado dos netos Cauã, 15, e Théo, 10, que perderam a mãe Ana Paula há 10 anos.

“A vida deu uma guinada e passamos a nos dedicar a eles. Não tivemos esse tempo de luto porque tínhamos que cuidar das crianças. Mas o teatro é uma coisa tão séria e importante em nossas vidas que ainda tenho vontade de dar aulas. É algo que me mantém viva”, conta Mercedes.

A vivência artística desde criança inspirou Rodrigo Carneiro, 52, filho dos artistas, a tornar-se ator, músico e jornalista cultural. Em 2020, ele dirigiu, ao lado de Otavio Sousa, o documentário de curta-metragem “Mercedes e Ricardo” (2020), que registra a trajetória do casal. Aos poucos, os netos também estão se inserindo em atividades artísticas. Cauã faz aula de bateria e Théo de guitarra. 

Já Ricardo tem planos de continuar investindo na carreira de escritor e já tem um projeto de livro sobre a quarta idade, pessoas com mais de 80 anos.

‘Nós temos planos, mas é preciso de um público que tenha o hábito de ver alguma coisa em Osasco, o hábito de comprar o livro de um escritor ou escritora da cidade’

Agência Mural

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